quinta-feira, 20 de junho de 2013

Dores.


Era dia de manifestação. E ela estava indo embora. Não tinha mais o cartaz e perdeu a blusa de frio em algum lugar.
Ela estava indo embora. Com o celular, a identidade e dez reais no bolso. E marcas. Marcas roxas por todo o corpo.
Duas balas de borracha no braço e uma na perna. A blusa branca, por causa da paz, manchada de sangue, por causa da violência. Os olhos ardendo por causa do gás. E as lágrimas caiam sem querer. Não era dor, não era tristeza. Era raiva.
Até que viu seu reflexo no vidro de um carro. Tinha uma mancha roxa na bochecha, parecia ter levado um soco. O ombro estava roxo também. Os olhos ardiam. Decidiu ir a um posto médico.
Nossa, não doeu?
E ela dizia que não. Não doeu. Nada.
Ela andava na rua, indo para casa e perguntavam. Sempre perguntavam.
Não ta doendo?
E ela negava. Porque não estava. Não doía, em lugar nenhum.
Um rapaz apontou para o braço roxo por causa das balas.
A mesma pergunta.
Não doeu?
Não, ela dizia. Não doeu, nem dói. E ia embora.
E se repetia. Sempre. A mesma pergunta.
Nossa, não ta doendo?
Mas não estava. No doía, só isso. Sem dor. Sem nada.
Até que chegou em casa. A mãe foi correndo até ela, com os olhos marejados. Mas a menina sorria um sorriso cansado. Cansado, mas feliz. A mãe a abraçou com força, mas logo soltou, com medo de machucá-la ainda mais. Mas não doía, nunca havia doído. Eram só manchas! Manchas da vida, manchas da história. Manchas muito menores que muitas outras.
Eram manchas necessárias para se ter uma consciência tranquila no meio do que estava acontecendo. Manchas a tempos esperadas. Sim, eram manchas de um momento feliz, não de dor. Não, os roxos não doíam, só lembravam o porque da luta.
Não, não doía, Nunca havia doído. E então, ela sentou no sofá. Cansada. Exausta. Feliz.
E então, o pai chegou. O pai que tinha falado para ela ficar em casa e não se meter nessas coisas. O pai que reclamou de ficar horas no trânsito por causa dos "baderneiros". O pai.
E ele parou na frente dela. Olhou as manchas. Todas. Com um sarcasmo no fundo dos olhos.
E com um sorriso malicioso perguntou. A pergunta. A mesma pergunta.
Dói, não dói?
E ela olhou para ele, que tinha passado o dia no clube. E ela viu a televisão atrás dele, que passava cometários do último jogo da Copa. E ela viu o jornal em cima da mesa, que falava de vândalos que botavam fogo no meio das manifestações. E ela viu o celular, onde as amigas falavam da festa do fim de semana. E ela viu a mãe, fazendo a conta dos impostos. E ela viu a notícia do aumento do salário dos políticos. E ela viu os números enormes dos gastos para a Copa. E ela viu um povo que deveria pagar vinte centavos a mais para andar de ônibus. E ela viu. E ela enxergou.
Ele perguntou.
Dói, não dói?
E ela respondeu.

Dói. Isso dói.